domingo, 6 de março de 2011

LÓGICA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS FORMAIS


[Autoria de: Itala Maria Loffredo D´Ottaviano (diretora do CLE/Unicamp), Walter Alexandre Carnielli (membro do Conselho Científico do CLE/Unicamp) e Jairo José da Silva (membro do Conselho Científico do CLE/Unicamp, secretário geral da Sociedade Brasileira de Fenomenologia e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Lógica); publicado no JORNAL DA CIÊNCIA em junho de 2006]


O projeto leibniziano de criar, no século XVII, uma lingua characterica, modelada na linguagem matemática, e um calculus ratiocinatur, também de inspiração matemática, em que se poderiam expressar os juízos simbolicamente e raciocinar corretamente de modo tão mecânico como se calcula algoritmicamente, foi uma idéia filosoficamente tão avançada que demandou cerca de dois séculos para frutificar, no século XIX, nos cálculos lógicos de Boole, Schroeder, Peirce, Peano e, principalmente, Frege.







Assim, a lógica simbólica nasceu, ao menos como idéia, no seio da filosofia, em resposta a um anseio essencialmente filosófico; ou seja, a lógica moderna – não menos que a tradicional lógica aristotélica e seus desenvolvimentos posteriores – pertence ao núcleo duro da filosofia. Se tivesse sido efetivamente levada a cabo por seu idealizador, a idéia que Leibniz – um dos criadores do cálculo diferencial e integral – apenas esboçou teria dado origem a uma revolução sem precedentes na história do pensamento. Teria sido criada uma filosofia simbólica e exata em que opiniões teriam dado lugar a teses demonstráveis (ou refutáveis) e intermináveis debates filosóficos cederiam seu espaço ao cálculo simbólico: “não discutamos, calculemos”, esse seria o mote.








Frege acreditava, no final do século XIX, que havia, pelo menos em parte, realizado o projeto leibniziano. Ao criar um sistema simbólico com uma linguagem adequada ao pensamento matemático e um conjunto de regras para a derivação de expressões simbólicas, Frege queria apenas demonstrar a pura logicidade da aritmética, mas fez mais que isso, apesar de ter malogrado em seus intentos originais. Ele criou a lógica simbólica, formal e matemática moderna, muito além da ciência aristotélica que Kant, no século XVIII, julgara acabada.



O que cabe notar, e que particularmente nos interessa salientar, é que a criação da lógica moderna responde a aspirações fundamentalmente filosóficas e se associa a um projeto fundacional em matemática: reduzir a aritmética à lógica e demonstrar (contra Kant) a tese filosófica da analiticidade da aritmética.






A lógica moderna nasce de braços dados com a filosofia, em particular com a filosofia da matemática e com o que poderíamos chamar da filosofia da computação, entre outras. Além do logicismo fregeano, dois outros grandes projetos fundacionais surgiram em matemática: o formalismo hilbertiano e o intuicionismo brouweriano. Hilbert deu mais uma guinada na lógica no rumo da contemporaneidade: ele a fez estritamente formal, além de criar a metamatemática, isto é, o estudo matemático de teorias matemáticas formalizadas.

O objetivo de formalizar o conhecimento matemático e demonstrar a sua consistência formal por métodos em certa medida intuitivos fracassou frente aos dois teoremas de Gödel, mas tanto o projeto original de Hilbert quanto os resultados de Gödel deixaram marcas na lógica, a teoria da prova e a teoria formal dos procedimentos algorítmicos que temos hoje.




Com a definição formal de verdade de Tarski e a concepção de computabilidade de Turing, mais uma vez o desenvolvimento da lógica respondia a inquietações de natureza filosófica (e reciprocamente, a lógica reforçava a sua contribuição efetiva ao esclarecimento filosófico). O intuicionismo, ainda mais intensamente que o logicismo fregeano e o formalismo hilbertiano, vicejou em campo filosófico. Todo o projeto fundacional de Brouwer respondia à necessidade de refundação epistemológica, ainda que restrita ao domínio do conhecimento matemático. 

E ele também nos legou uma fatia de progresso lógico, ao permitir-nos conceber sistemas lógico-formais alternativos, no caso a lógica intuicionista, e toda uma dimensão de estudos meta-lógicos. Mais uma vez a lógica se beneficiava da labuta fundacional e suas preocupações filosóficas.




Por outras razões, de natureza também filosófica, a primeira metade do século XX assistiu ao eclodir das lógicas não-aristotélicas, conhecidas como lógicas não-clássicas, entre elas as lógicas modais, lógicas intuicionistas, lógica polivalentes, lógicas relevantes, lógicas difusas, entre outras.

Isso tudo nos mostra, inequivocamente, o quão filosófica é na origem a moderna lógica simbólica, e reciprocamente, quão potente é a lógica simbólica como instrumento metodológico da filosofia. Símbolos, como acreditava o próprio Leibniz, são potentes auxiliares do pensamento.






Grande parte da filosofia do século XX não existiria sem o aporte da lógica simbólica e formal; por exemplo, o primeiro Wittgenstein, o projeto filosófico de Carnap e todo o positivismo lógico do círculo de Viena, a filosofia de Russell, a semântica e a filosofia da linguagem modernas, a filosofia formal de Montague, as contribuições extremamente importantes de Kripke e Quine a domínios centrais da filosofia e da lógica, e tantos outros pensadores e perspectivas filosóficas. Além, claro, da filosofia das ciências formais, que teve sua origem nos já mencionados projetos fundacionais do início do século XX.

Há que se salientar, nos anos 50, o surgimento das lógicas paraconsistentes, cujo berço brasileiro projeta nosso país no cenário científico e filosófico mundial; Newton Carneiro Affonso da Costa é um dos seus fundadores. Tanto quanto no caso da concepção intuicionista, a concepção paraconsistentista da lógica levou a uma noção de progresso lógico que se refletiu em particular na comunidade científico-filosófica brasileira. No Brasil sempre foi intensa a interação entre lógicos matemáticos e filósofos cujas preocupações inserem-se na tradição acima referida.




As contribuições originais de da Costa e de sua escola à lógica formal, de notável repercussão internacional, sempre estiveram em diálogo cerrado com problemas filosóficos, e a criação do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp por Oswaldo Porchat Pereira em 1977, iconiza essa interação entre lógica e filosofia.

Os lógicos brasileiros que se dedicam à pesquisa ativa em lógica contemporânea são altamente considerados pela comunidade científica internacional, com trabalhos inclusive de repercussão em aplicações tecnológicas estratégicas tais como o tratamento de informação em condições de incerteza, teoria de sistema e complexidade, computação quântica, entre outros.








POST-SCRIPTUM:




Para quem nunca ouviu falar em Lógica Paraconsistente aconselho, pelo menos, uma rápida pesquisa no Google. Posso garantir que vale à pena. De qualquer forma voltarei ao assunto em futuras postagens...








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